A Festa da Chiquita

AFesta da Chiquita é um dos maiores símbolos de “profanação”, ou seja, de “inversão do sentido sagrado” marcadamente presente na manifestação religiosa do Círio de Nossa Senhora de Nazaré, que ocorre no mês de outubro em Belém. Teve seu começo, no final da década de 1970, e inicialmente foi denominada como a “Festa das Filhas da Chiquita”, sendo que, desde a origem do evento, o mesmo sempre contou com a presença de intelectuais, jornalistas, poetas, fotógrafos, artistas plásticos, políticos, cantores e público em geral, especialmente, do cenário cultural belenense.

Em sua fase inicial, entre os anos de 1975 e 1976, ocorria na época do Carnaval, quando grupos de homossexuais e simpatizantes organizavam um bloco carnavalesco que saía das proximidades do extinto presídio São José, percorrendo as ruas do centro da cidade, até o Bar do Parque, que fica localizado entre as avenidas Presidente Vargas e Assis de Vasconcelos. Entretanto, em 1978, a festa já tinha passado a ser organizada no entorno deste bar, que fica situado na Praça da República, ao lado do Theatro da Paz, não por acaso, bem próximo a um dos lugares por onde percorre a procissão da Trasladação, uma vez que, a Festa da Chiquita, também passou a ocorrer, no dia desta importante procissão, no segundo sábado de outubro, na véspera da grande Romaria do Círio, que acontece no domingo de manhã. Assim, os organizadores do Baile da Chiquita, buscaram aproximar a festa “profana” da festa “sagrada”, tanto espacialmente, mas, sobretudo, temporalmente. Segundo relatos, essa aproximação visava chamar atenção da Igreja, e da sociedade como um todo, para a condição de exclusão social, de perseguição, e até mesmo de violência aos quais eram submetidos determinados grupos sociais, especialmente prostitutas, travestis e homossexuais que comumente frequentavam, e ainda hoje, frequentam esta área do centro urbano de Belém. Entretanto, essa forma de protesto, é feita de maneira “jocosa”, “brincalhona”, com direito a música, dança e consumo de bebida alcoólica, impregnando de “elementos profanos” o espaço sagrado, dedicado ao maior símbolo de devoção dos paraenses, Nossa Senhora de Nazaré, o que, muitas vezes, não é bem visto, sobretudo, pelos setores mais conservadores da Igreja e da sociedade, que não veem com “bons olhos” essa aproximação, considerando-a um “desrespeito” à Virgem.

Isto tem provocado, ao longo dos anos, momentos de tensões e disputas entre esses diferentes segmentos em torno do Círio de Nazaré. Por outro lado, para os organizadores e simpatizantes da Festa da Chiquita, esta também é uma forma de homenagear a Santa, uma maneira de expressar que “todos são Filhos de Maria”, inclusive, aqueles que, muitas vezes, são vistos, por uma moral religiosa cristã, como mais “pecadores”, em função da sua sexualidade, considerada como “imoral”, e “perigosa”. Nas duas últimas décadas, especialmente, em decorrência do surgimento, organização e crescimento de movimentos sociais no mundo, em favor dos direitos destas categorias, a Festa da Chiquita, vem cada vez mais se tornando em uma manifestação do movimento LGBTQI+ (movimento civil e social que busca defender a aceitação das pessoas em suas diferentes identidades sexuais e de gênero), ou seja, em um evento, que combate o preconceito contra os homossexuais e grupos afins, e reivindica direitos para esses setores que foram historicamente excluídos. Neste sentido, ao longo dos anos, vários prêmios foram sendo instituídos na Chiquita: Veado de Ouro, Botina de Prata, Rainha do Círio e Amigos da Chiquita, com o objetivo de homenagear pessoas, geralmente artistas do cenário local ou nacional, que se destacaram na defesa dos direitos da comunidade LGBTQI+.

No final da década de 1990, além do grupo tradicional de carimbó – ritmo musical típico da Amazônia que mistura elementos indígenas, africanos e portugueses –, Borboletas do Mar, o baile da Chiquita, tem contado com a apresentação de shows e performances de inúmeros artistas apoiadores e simpatizantes desse movimento. Longe de estar distante de conflitos, a Festa da Chiquita, continua sendo alvo constante de controvérsias e disputas em torno do Círio. Nesse sentido, um dos momentos de maior tensão ocorreu em 2004 , quando o Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), realizou e apresentou o Dossiê onde registrava o Círio de Nazaré como Patrimônio Imaterial Nacional, sendo que, nesta ocasião todas as procissões e festividades ligadas ao evento, que ocorrem durante a quinzena do Círio, foram incorporadas no registro, menos a Festa da Chiquita, devido às discriminações da Igreja, e da própria Diretoria do Círio, que inicialmente conseguiram retirar a mesma do processo, alegando que uma festa gay não poderia ser inserida no contexto da Festividade do Círio. Contudo, a partir da disputa, envolvendo setores da Igreja, e organizadores da Festa da Chiquita, esta última, saiu vitoriosa, e conseguiu o direito de fazer parte do Dossiê IPHAN, sendo finalmente integrada às comemorações do Círio, ainda que seja negada pela Igreja, como parte das celebrações em homenagem à Nossa Senhora de Nazaré.

A despeito dos conflitos e controvérsias, e das novas configurações que a Festa da Chiquita adquiriu ao longo dos anos, seus participantes, estando aí incluídos, tanto os seus organizadores quanto seus simpatizantes, a compreendem não apenas como uma forma de reivindicar e legitimar direitos da comunidade LGBT, mas também como uma forma de expressar à sua devoção a Virgem de Nazaré. O fato é que, a Festa da Chiquita, ao longo dos seus mais de quarenta anos de existência se tornou um dos símbolos tradicionais do Círio, conseguindo atrair um público expressivo de pessoas de Belém e de turistas, que se reúnem todos os anos para celebrar a vida, e à sua maneira demonstrar sua fé e amor a Nossa Senhora.